terça-feira, 22 de janeiro de 2008

smoke gets in you eyes

Hoje, na farmácia, entrou um senhor. Deveria ter uns setenta anos. Diriguiu-se à empregada. "O senhor, faz favor..." Ele não hesitou, falou em voz baixa, com a determinação e a urgência de quem faz o que tem de ser feito. "Quero deixar de fumar". No mesmo tom com que poderia ter dito "quero um frasco de veneno para matar a minha mulher". A empregada, solícita, lançou-se num discurso entusiasta. "Não vale a pena - disse o senhor - dê-me lá o que é preciso, que pensar já eu pensei demais." Não havia nele satisfação, nem triunfo, nem a certeza de estar a viver o primeiro dia do resto da sua vida. Talvez fosse impressão minha, mas o que detectei foi vergonha. Vergonha, aos setenta e tal anos, de precisar de ajuda para acabar com um vício reprovável, repugnante, que o marginaliza, que o humilha.
Por mim, que nem fumo, não me faz qualquer diferença a lei do tabaco, devo confessar. Mas, tal como aquele senhor, cresci e vivi na companhia de milhões de imagens de sedução e glamour, em que o cigarro desempenhava se não o papel principal, pelo menos o de cúmplice dos principais.

Ora atentem bem e vejam se a chispa que inflama o olhar de Bogart nesta fotografia seria a mesma sem o momento íntimo, sedutor e cúmplice da chama que envolve subtilmente a ponta do cigarro?
espaço
O acto de fumar era, então, um acto social. Habituámo-nos a ver o cigarro na mão das personagens que mais admirávamos, os artistas, os intelectuais, os progressistas. Sinal de independência, de afirmação, de provocação. A imagem de Natália Correia não estaria completa sem a sua longa boquilha. Pessoa ficou para a posteridade pintado por Almada, segurando entre os dedos um cigarro. Sartre posava puxando fumaças do cachimbo. Monet era uma fumador tão convicto que pintou vários auto-retratos com cigarro. Não devem praticamente existir fotografias de Malraux sem o cigarro na boca (problema quando os correios franceses o quiseram homenagear num selo). E Che Guevara justificava a fama de um bom cubano.







Quanto a Ronald Regan, esse foi mesmo mais longe, sendo o prescritor de uma marca de cigarros, que ele afirmava oferecer aos seus amigos como presente de Natal, numa famosa campanha que correu mundo.
Aliás, no cinema, o cigarro - ou o charuto - constituiu sempre elemento para ajudar a "compôr" uma imagem e quantas vezes para a carregar de glamour e sedução.

Harpo Marx


Humphrey Bogart

Orson Welles

"There's only two things in this world that a 'real man' needs: a cup of coffee and a good smoke"
Johnny Guitar

James Dean

Roy Scheider no papel de Joe Giddeon, em All that Jazz, de Bob Fosse.

Rita Hayworth - Gilda

O que pensariam estes fumadores hoje, ao verem este anúncio, "made in Hollywood"?

Mas se o cigarro era uma boa muleta para criar uma imagem, para manter as mãos ocupadas, para compôr uma personagem (não encontrei imagens de Hitler, Salazar ou Mao Tse-tung a fumar), que não se preocupem os mais inseguros nestas matérias de imagem porque os políticos deste admirável mundo novo sem mácula e sem fumo estão a trabalhar em novas propostas para manter as mãos ocupadas e ajudar a compôr a imagem. Confiemos em que eles vão encontrar boas soluções!




E, já agora, não esqueçamos os Platters: "when a lovely flame dies, smoke gets in your eyes"

11 comentários:

Bandida disse...

belo texto, MEC!!

toma lá um cigarro para continuarmos a conversa...


beijo saudoso!

B.

intruso disse...

ahah!

brilhante.................

Maria Eduarda Colares disse...

obrigada pelo cigarrinho, bandida. Numa cajadada só mato duas saudades.
beijo

Maria Eduarda Colares disse...

obrigada, intruso! Beijo

fcorado disse...

brilhante, brilhante, brilhante!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

n©n disse...

Gostei imenso... vou levar e linkar, tá?


Kiss

Ana Paula Sena disse...

Brilhante, o humor refinado! :):)
As imagens são de delirar (todas!), cada uma em seu género.

Beijinhos saudáveis mas com algum fumo!

o anjinho disse...

já agora, quantos morreram de cancro?

o anjinho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Eduarda Colares disse...

Obrigada, S. Obrigada Ana Paula. Gosto de as ver por cá.
Beijinhos

Maria Eduarda Colares disse...

anjinho, pois não muitos. Que eu saiba, só o Bogart. Natália Correia, Sartre, Malraux, Grouxo Marx, Orson Welles, Sterling Hayden e Monet, com idades respeitáveis, de causas diversas. Pessoa... talvez do mal de viver. James Dean de acidente (as estradas matam e ainda não foram proibidas). O Che, de bala (as guerras matam e são muito nocivas para a saúde pública). R. Reagan e Rita Hayworth creio que de Alzheimer. Roy Scheider está vivo.
A média é aceitável.
Obrigada pela visita