terça-feira, 25 de novembro de 2008

estranho poder este da lembrança...

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(...) Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas, a um apelo de abandono, a um esquecimento «real», a bruma da distância levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas «comovente»...

Vergílio Ferreira - Manhã Submersa

domingo, 16 de novembro de 2008

yukio mishima

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Acabei de ler aquele que me atreverei talvez a classificar como o livro mais perfeito que li. Uma obra-prima de ourivesaria que trabalha minuciosamente as palavras, cinzelando cada uma com a perfeição de peça única; uma descida aos infernos que se faz ao longo de um fio da seda mais fina e frágil; um desafiar os limites que fere até ao âmago com a amenidade de uma brisa.
O livro é “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” e o autor é Yukio Mishima.


O meu conhecimento de Mishima era um pouco superficial. Sabia da sua história, da forma como pôs termo à vida num ritual sangrento, da sua defesa até ao limite dos ideais tradicionais japoneses, da sua intolerância perante a perda de poder do Imperador; sabia da sua obra, das hipóteses frustradas de ser vencedor do Nobel, perdido para o seu compatriota e contemporâneo Kawabata; das suas incursões no cinema e no teatro. Por me ter sido pedido que traduzisse parcialmente as cartas trocadas precisamente entre Mishima e Kawabata, para uma encenação a realizar no CCB por ocasião do Ciclo Mishima, decidi aprofundar o meu conhecimento de ambos os escritores, o que foi o abrir as portas de um mundo tão fascinante que dei por mim a acalentar o sonho de aprender japonês. Mas isso não será já certamente nesta encarnação.


“O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” tem tanto de insuportavelmente belo como de intoleravelmente perverso. A história pode contar-se de três maneiras:
Versão 1: “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” é a história de uma jovem viúva, Fusako, que se apaixona por um marinheiro, Ryuji, numa das suas licenças em terra. A paixão que os domina é toda feita de desejo, de fúria, de tempestade, da certeza de que não lhes resta mais do que duas noites. Amam-se com a urgência e a impetuosidade dos clandestinos, enquanto do lado de fora da janela o mar uiva, num grito desumano e medonho, o lamento da perda do marinheiro, conquistado pelo corpo sedutor da mulher e cego pelo desejo. Fusako tem um filho de 13 anos, Noboru, que assiste, escondido num armário, à noite de amor em que a mãe roubou o marinheiro ao mar. Para Noboru só o mar e os barcos são dignos de admiração e um marinheiro é um herói e não um homem. Ao tornar-se humano, Ryuji perde a admiração do adolescente e terá um preço muito elevado a pagar.



Versão 2: O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar é a história de um rapaz de 13 anos, Noboru, que pertence a um grupo de adolescentes, uma espécie de “sociedade secreta”. Inteligentes, excelentes alunos, esses jovens vivem obcecados pela formação de uma personalidade de homens verdadeiros, livres, incapazes da mais pequena fraqueza ou cedência. Para eles o homem mais desprezível será o pai, qualquer pai – e quanto mais compreensivo e tolerante, quanto menos arbitrário e insensível, pior. Um pai é um ser que limita os filhos ao educá-los, atrofia-os dentro de limites castradores, dá-lhes motivos para que não soltem os impulsos mais poderosos que os habitam, manieta-os com argumentos e razões. Só liberto de todos os condicionalismos, de todas as raízes e de todas as noções de bem ou de mal é que o homem pode cumprir o destino glorioso que lhe está reservado. O grupo passa os seus dias no treino da dureza, da insensibilidade e da crueldade, que leva por vezes a extremos difíceis de suportar, como no já clássico episódio do gatinho.
Noboru tem a vantagem, para o grupo, de não ter pai, portanto de estar menos limitado no cumprimento da sua missão. Contudo, Noboru tem uma mãe, Fusako, viúva, jovem e muito bela, dona de uma elegante loja de modas, e que tem como amante um marinheiro, Ryuji. A figura do marinheiro é aceite por Noboru porque é um homem sem amarras, cujo único compromisso é para com o mar e cuja única missão é ser livre. Mas Ryuji irá perder as graças do mar e, ao mesmo tempo perder as graças de Noboru, o que virá a ser fatal.




Versão 3: “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” é uma parábola sobre a história do Japão e a forma como o Imperador perdeu as graças dos que consideravam que o Japão nunca se deveria submeter ao Ocidente. O grupo de adolescentes, treinados duramente para a insensibilidade, para a crueldade, para o sacrifício e para a morte, representa os conservadores, para quem o homem livre se edifica sobre os destroços da liberdade alheia; o marinheiro é o líder, o homem forte em quem o jovem Noboru confia porque ele será sempre livre e a sua força suplantará tudo; a mãe é o poder que corrompe, a submissão ao que vem do ocidente (Fusako na sua loja de moda recebe as mais recentes novidades europeias, o que lhe permite desenvolver um negócio mais do que próspero), a força da sedução que torna Ryuji fraco, que o leva a abandonar o mar, o seu destino, para se aburguesar, casar e tornar-se – o que virá a ser fatal – um pai e, para mais, um pai compreensivo, que perdoa a transgressão de Noboru, em vez de o castigar sem piedade.
Seja qual for a história, “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar” é uma novela de uma beleza asfixiante, dolorosa e profunda, como um abismo para o qual nos deixamos arrastar voluntariamente, apesar de sabermos que o embate no fundo vai ser muito doloroso.
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Mishima manipula-nos com a enorme sabedoria de um mestre ou de um mago. O início da novela é um fatal canto de sereia. O encontro entre Fusako e Ryuji, testemunhado por Noboru do seu esconderijo, através de um furo na parede, constitui das páginas mais perfeitas de toda a literatura. A envolvência da noite quente que anuncia uma tempestade de Verão, os corpos suados, o desejo violento, a luz coada, o grito do mar, o corpo deslumbrante do marinheiro contra o corpo perfeito de Fusako, a descoberta de Noboru do sexo, do desejo, do êxtase e Mishima tem o leitor na mão, rendido até ao fim, seja qual for a crueldade do prato que ele tem para lhe servir em seguida. Mas a sua sabedoria é infinita, a sensibilidade não o engana: o leitor está preso e a história vai decorrer com segurança: a mulher apaixona-se pelo marinheiro, o amante de uma noite transforma-se no apaixonado fiel, o homem de olhar carregado já é capaz de sorrir e percebemos que o seu mutismo não correspondia propriamente ao enigma de um segredo, mas que era apenas falta de conversa. O mito era, afinal, humano. Mishima é implacável: já não somos capazes de parar, embora não fosse aquilo o que queríamos ler. E enquanto procuramos ainda resistir à derrocada da imagem do marinheiro cúmplice do mar, portador de um segredo que está fora do alcance dos homens, enquanto estamos fragilizados pela perda da inocência, ele revela-nos sem piedade a receita hábil para misturar os ingredientes de que se faz a mais negra perversidade: somos levados ao seio do grupo dos companheiros de Noboru. Ainda crianças, alunos excepcionais, capazes de aparentar a inocência de anjos, eles revelam-se a própria crueldade em figura humana e nós não conseguimos desviar o olhar. A narrativa é tão precisa, tão cirúrgica ao escolher o ponto onde nos deve atingir, que estamos presos e percebemos que estamos prestes a saber de que massa são feitos os monstros.
E então sabemos que Ryuji está perdido: fraco, apaixonado, cheio de vontade de agradar à mulher que ama e de ser um bom pai para o filho dela, capaz de trocar a camisola e o casacão de marinheiro por um elegante fato europeu, esquecido dos quartos de vigia e das marés, Ryuji não se limitou a perder as graças do mar.

sábado, 1 de novembro de 2008

cineeco 2008

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Faz-se silêncio na sala. Algumas tosses. As pessoas ajeitam-se nas cadeiras. Uma tosse mais persistente. Ele aproxima-se do microfone. Está aberta a edição de 2008. Acabara de cair a noite sobre Seia. CineEco. Festival Internacional de Cinema e Vídeo de Ambiente. Seia. Serra da Estrela.
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